sexta-feira, 8 de outubro de 2010

By André Nunes

Reproduzo o olhar de um homem, que mesmo com sua convicção bem formada, não deixa de reconhecer a energia que é o Cirio de Nazaré.

SER PARAENSE

Há três anos, um amigo, creio, como desafio, ou mesmo, de pura sacanagem pediu-me que escrevesse um artigo sobre a grande festa dos paraenses, o Cirio de Nazaré, para a Revista Veja, Edicão Especial. Claro que ele sabia das minhas convicções. O que ele não sabia é que uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.

Escrevi com fé. Com o coração de paraense do tamanho da Amazônia. Paraense de hoje, de ontem, de sempre.
Cabano.

Em tempo: Na Veja mudaram o título para "O Estado de Nossa Senhora de Nazaré". Sabe como é editor, mas até que eu gostei.



CÍRIO CABANO
André Costa Nunes
andré@terradomeio.com.br
www.terradomeio.com.br


Paraense, Ateu. Filosoficamente, materialista. Devoto de Nossa Senhora de Nazaré. Este último atributo, no mês de outubro, transcende os demais. É inerente ao ser paraense.

Durante algum tempo, no auge do obscurantismo ideológico da juventude, ainda tentei renegar, mas romântico inveterado, há muito deixei de remar contra a maré. Mergulhei de cabeça no paraensismo, o que não existe sem açaí, tacacá, Ver-o-Peso, marés, rios e ilhas. Canoas e torço nu. Sem camisa. Sem a devoção à Virgem de Nazaré.

E isso tudo, à imagem do próprio Rio Amazonas, como em um caudal, deságua em Belém, no segundo domingo de outubro. A colossal procissão do Círio, com milhares – fala-se até em milhões – de romeiros, diz-que, começa na catedral da Sé e termina cinco ou seis quilômetros depois na Basílica de Nazaré, mas um olhar atento vai além.

Vê que a romaria começa em cada furo, rio, igarapé, ilha ou beiradão.

Canoas, ubás, caxiris, barcos, a motor, vela ou remo. Começa nas palafitas e barrancos. Nos quintais das cidades, no porco cevado, no patarrão, no ralar da mandioca, no tipiti, e no moer da folha de maniva. Matéria prima para o almoço do Círio. Maniçoba e pato no tucupi. Farto e generoso. Para a família, para os amigos, e para quem mais chegar.

Começa no vestido de chita com babados, decote comportado e comprimento a baixo dos joelhos. Calça e camisa de manga comprida, novas, as únicas mudas de roupa compradas no ano, mas estreadas no Dia da Festa. Sapatos, sandálias, baixas ou de salto, tênis? Nenhum.

Acompanhar o Círio de Nazaré se vai descalço. Naturalmente.

Começa com banho-de-cheiro. Vinde-cá, priprioca, patichouli, orisa, pau-cheiroso, chama, pau-rosa, catinga-de-mulata.

E se vem de todos os cantos do Estado Pará que em outubro se transmuda para além das fronteiras geopolíticas. Invade o Maranhão, o Amazonas, o Amapá. É como se fosse o Estado de Nossa Senhora de Nazaré. Esse é o núcleo central tangido pelas águas, senhora de todos os destinos.

Essa é a procissão cabana de antes da estrada, do asfalto, do ônibus, do avião, do arranha-céu, do apartamento, do estacionamento proibido.

Essa nova tribo do fast food também é bem-vinda. Por adesão, é claro, afinal, no manto da Virgem e no coração cabano há sempre espaço de sobra. Apenas há que aderir ao espírito secular do Círio. Ficar mundiado pelo bom e pelo bem. Sentir-se igual. Caminhar descalço.

É por tudo isso, pelo peso dessa enorme bagagem da cultura paraense, que, todos os anos, quando passa a berlinda da santa, este velho comunista se emociona e chora.

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